Círculo de Leitura
CONTO: O HOMEM QUE ENXERGAVA A
MORTE - RICARDO AZEVEDO
Era um homem pobre. Morava num casebre
com a mulher e seis filhos pequenos. Vivia triste e inconformado pela miséria
em que vivia.
Um
dia, sua esposa engravidou de novo. Assim que o sétimo filho nasceu, o homem
disse à mulher:
—
Vou ver se acho alguém que queira ser padrinho de nosso filho.
Temia
que ninguém quisesse ser padrinho da criança, arranjar padrinho para o sexto
filho já tinha sido difícil. Quem ia querer ser compadre de um pé-rapado como
ele?
E
lá se foi o homem andando e pensando e quanto mais pensava mais inconformado e
triste ficava.
Mas
no tempo, ninguém consegue colocar rédeas.
O
dia passou, o sol caiu na boca da noite e o homem ainda não tinha encontrado
ninguém que aceitasse ser padrinho de seu filho.
Desanimado,
voltava para casa, quando deu uma grande ventania… que levantou poeira em
seus olhos e surgiu uma figura curva, vestindo uma capa escura,
apoiada numa bengala de osso. Com voz baixa ela ofereceu-se:
—
Se quiser, posso ser madrinha de seu filho.
—
Quem é você? perguntou o homem.
A figura respondeu:
-- Sou a Morte.
O
homem não pensou duas vezes:
--
Aceito. Você sempre foi justa e honesta, pois leva para o cemitério todas as
pessoas, sejam elas ricas ou pobres. Sim, quero que seja minha comadre,
madrinha de meu sétimo filho!
E
assim foi. No dia combinado a Morte apareceu com sua capa escura e sua bengala
de osso. O batismo foi realizado com muita festa e comida farta oferecida
pela madrinha. Após a cerimônia, a Morte chamou o homem de lado.
--
Fiquei muito feliz com seu convite. Já estou acostumada a ser maltratada. Em
todos os lugares por onde ando as pessoas fogem de mim, falam mal, xingam …
Essa gente não entende que não faço mais do que cumprir minha obrigação. Já
imaginou se ninguém mais morresse no mundo? Não ia sobrar lugar para as
crianças que iam nascer! Você é a primeira pessoa que me trata com
gentileza e compreensão.
E
disse mais:
—
Quero retribuir tanta consideração. Pretendo ser uma ótima madrinha para seu
filho. E por isso vou transformá-lo numa pessoa rica, famosa e poderosa. Só
assim, você poderá criar, proteger e cuidar de meu afilhado. A partir de
hoje você será um médico.
—
Médico? Eu? — perguntou o sujeito, espantado. — Mas eu de medicina não entendo
nada!
—
Preste atenção — disse ela. Volte para casa e coloque uma placa dizendo-se
médico. De hoje em diante, caso seja chamado para examinar algum
doente, somente você poderá me enxergar. Se eu estiver na cabeceira da
cama, isso será sinal de que a pessoa ficará boa, se me enxergar no pé da cama
o doente logo, logo vai esticar as canelas.
E
nesse instante soprou um vento gelado, e a morte disse:— Daqui pra
frente — você vai ter o dom de conseguir enxergar a Morte cumprindo sua missão.
O homem pegou prego e martelo escreveu MÉDICO numa tabuleta e a
pregou bem na frente de sua casa. Logo apareceram as primeiras
pessoas adoentadas.
O
tempo passava correndo feito um rio que ninguém vê.
Enquanto
isso, sua fama de médico começou a crescer, pois ele não errava uma. O doente
podia estar muito mal e já desenganado. Se ele dizia que ia viver, dali a pouco
o doente estava curado. Em outros casos, às vezes a pessoa nem parecia muito
enferma, mas se o médico disse-se que não tinha jeito, não demorava
muito e a pessoa batia as botas.
A
fama do homem pobre que virou médico correu mundo. E com a fama veio a fortuna.
Como muitas pessoas curadas costumavam pagar bem, o sujeito acabou ficando
rico.
Mas
o tempo é um trem que não sabe parar na estação.
O
sétimo filho do homem, o afilhado da Morte, cresceu e tornou-se adulto.
Certa
noite, bateram na porta da casa do médico. Quando o médico abriu soprou uma
forte ventania e apareceu uma figura curva, vestindo uma capa escura, apoiada
numa bengala de osso, que falou em voz baixa:
—
Caro compadre, tenho uma notícia triste: sua hora chegou. Seu filho já é homem
feito. Estou aqui para levar você. O médico deu um pulo da cadeira. — Mas como!
Fui pobre e sofri muito, agora tenho profissão, ajudo as pessoas, tenho
riqueza e fartura, você aparece pra me levar! Isso não é justo! O médico
não se conformava. E argumentou, e pediu, e suplicou tanto que a Morte resolveu
conceder mais um pouquinho de tempo.
—
Só porque somos compadres, só por ser madrinha de seu filho, vou lhe dar mais
um ano de vida — disse isto e sumiu numa ventania.
O
velho médico continuou trabalhando. Um dia, recebeu um chamado urgente.
Uma moça estava gravemente enferma. Ele pegou a maleta e saiu correndo. Assim
que entrou no quarto da menina enxergou, parada ao pé da cama, a figura sombria
e invisível da Morte, pronta para dar o bote.
O
médico examinou a moça, ela era tão bonita e delicada, que ele sentiu pena. Uma
pessoa tão jovem, com uma vida inteira pela frente, não podia morrer assim sem
mais nem menos. Então ele pensou e tomou uma decisão. “Já estou velho, não
tenho nada a perder. Pela primeira vez na vida vou ter que desafiar minha
comadre.”
E
rápido, de surpresa, antes que a Morte pudesse fazer qualquer coisa, deu um
jeito de virar o corpo da menina na cama, e a cabeça ficou no lugar dos pés e
os pés foram parar do lado da cabeceira. Fez isso e berrou:
—
Tenho certeza! Ela vai viver!
A linda
menina abriu os olhos e sorriu como se tivesse acordado de um sonho ruim.
A
Morte soltou um uivo e foi embora contrariada, e no dia seguinte apareceu
na casa do médico num pé de vento.
—
Que história é essa? Ontem você me enganou!
—
Mas ela ainda era uma criança!
---
E daí? Você contrariou o destino. Agora vai pagar caro. Vou levar você no lugar
dela!
O
médico tentou negociar. Disse que queria viver mais um pouco.
A
Morte balançou a cabeça e disse: — Quero te mostrar uma coisa?
E,
num passe de mágica, transportou o médico para um lugar desconhecido e
estranho. Era um salão imenso, cheio de velas acesas, de todas as qualidades,
tipos e tamanhos.
—
O que é isso? — quis saber o velho.
—
Cada vela dessas corresponde à vida de uma pessoa. As velas grandes, bem
acesas, cheias de luz, são vidas que ainda vão durar muito. As pequenas são
vidas que já estão chegando ao fim. Olhe a sua. E mostrou um toquinho de vela,
com a chama trêmula, quase apagando.
—
Mas então minha vida está por um fio! Quer dizer que não me resta nenhuma
esperança?
A
Morte fez “sim” com a cabeça. Em seguida, noutro passe de mágica transportou o
médico de volta para casa.
—
Tenho um último pedido, antes de morrer, gostaria de rezar o pai nosso.
A
Morte concordou. Mas o velho médico não ficou satisfeito.
—
Quero que me prometa uma coisa. Jure de pé junto que só vai me levar embora
depois que eu terminar a oração.
A
Morte jurou e o homem começou a rezar:
—
Pai-Nosso que…
Começou,
parou e gargalhou.
—
Vamos lá, compadre. Termine logo com isso que eu tenho mais o que fazer.
—
Coisa nenhuma! Você jurou que só me levava quando eu terminasse de rezar.
Pois bem, pretendo levar anos para acabar minha reza…
Ao
perceber que tinha sido enganada mais uma vez, a Morte rodopiou no vento e foi
embora, mas antes fez uma ameaça:
—
Deixa que eu pego você!
Dizem que
aquele homem ainda durou muitos e muitos anos.
Mas,
um dia, andando a cavalo por uma estrada, deu com um corpo caído. O velho
médico bem que tentou, mas não havia nada a fazer.
—
Que tristeza! Morrer assim sozinho no meio do caminho!
Antes
de enterrar o infeliz, o bom homem tirou o chapéu e rezou o Pai-Nosso.
Mal
acabou de dizer amém, levantou uma grande ventania e o morto abriu os olhos e
sorriu.
Era
a Morte fingindo-se de morto.
—
Agora você não me escapa!
Naquele
exato instante, uma vela pequena, num lugar desconhecido e estranho, estremeceu
e ficou sem luz.
Ricardo Azevedo.
Entendendo o conto:
01 – Em
relação ao espaço e ao tempo da narrativa em qualquer conto de assombração é
possível saber quando e onde a história narrada acontece?
A história se passa num casebre e o tempo é indeterminado.
02 – Neste conto a personagem
principal tenta enganar a morte para continuar vivendo por mais tempo. Como o
homem consegue enganá-la? Explique.
Na primeira vez que ela veio
busca-lo, ele pediu mais um ano de vida.
Depois pediu para a morte
espera-lo a rezar um Pai-Nosso e não terminava nunca, assim a morte desistiu de
novo.
03 – Com base na leitura do
texto, assinale as alternativas verdadeiras (V) ou falsas (F) que interpretam
de forma adequada as informações presentes no conto.
(V) Ocorre o pacto entre a morte e
o humilde homem.
(V) O sucesso profissional do
homem que enxergava a morte percorre o mundo.
(V) São apresentadas informações
sobre a vida do homem e de como era a sua família.
(F) Quando nasce o oitavo filho do
homem, ele resolve escolher a morte como madrinha da criança.
(V) Uma figura curva, vestindo uma
capa escura, apoiada numa bengala feita de osso, foi buscar o homem para
leva-lo com ela.
(F) A morte dá instruções ao homem
sobre como atuar na profissão de advogado.
(F) O encontro do homem com a
morte foi interrompido pela mulher do homem.
04 – Mesmo tratando de um tema
tão arrepiante como é a morte, Ricardo Azevedo consegue ser engraçado. Por que
podemos dizer que há humor no conto? Explique.
O humor está quando o homem
engana a morte, várias vezes.
05 – O que você achou mais
interessante a respeito dos contos de assombração?
Resposta pessoal do aluno.
06 – Sobre o gênero textual
“Contos de assombração”, marque com um X somente nas
alternativas corretivas.
(X) As personagens, normalmente
são fantasmas, monstros, caveiras e outros seres assombrosos.
( ) Os contos
de assombração são histórias verdadeiras.
( ) O narrador
participa da história.
( ) O texto
apresenta uma moral que fica no final da história.
(X) O tempo em que se passa a
história é indeterminado.
(X) Vários contos de assombração
possuem características próprias de uma região e geralmente são histórias
contadas por pessoas mais velhas.
Questões de
múltipla escolha
✅ Questão 1 – O principal conflito
do conto é:
A) A pobreza do personagem e a dificuldade de alimentar seus filhos.
B) A
tentativa do personagem de enganar a Morte para viver mais.
C) A escolha do personagem por aceitar a Morte como madrinha.
D) O crescimento do filho afilhado da Morte.
✅ Questão 2
– Por que o personagem aceita a Morte como madrinha de seu filho?
A) Porque ela promete ajudá-lo a encontrar um emprego.
B) Porque ela oferece um grande presente à criança.
C) Porque ele a reconhece como justa e imparcial.
D) Porque a esposa insiste que ela seja a madrinha.
✅ Questão 3
– No conto, a vela é usada como símbolo de:
A) Justiça e desigualdade. B)
Sabedoria e juventude. C) Esperança e
fé. D) Vida e duração da existência.
✅ Questão 4
– Com base na estrutura e no conteúdo, o texto lido pode ser classificado como:
A) Crônica jornalística.
B) Notícia informativa.
C) Conto popular com elementos fantásticos. D) Biografia literária.
✅ Questão 5
– O comportamento do médico ao longo da narrativa revela que ele é:
A) Acomodado e submisso ao destino. B)
Corajoso, esperto e determinado a viver.
C) Malicioso e disposto a enganar todos. D) Frio, calculista e sem empatia
pelos doentes.
✍️ Questões discursivas /
argumentativas para debates com orientação do educador
1. O personagem principal aceita a Morte como
madrinha de seu filho, dizendo que ela é justa, pois trata igualmente ricos e
pobres.
👉 Você concorda com a visão do personagem sobre a Morte ser
"justa"? Justifique sua resposta com argumentos próprios e
exemplos do texto ou da vida real.
2. O médico tenta enganar a Morte para salvar
a vida de uma moça jovem.
👉 Você acha que ele agiu corretamente ao desafiar a Morte?
Explique sua opinião, considerando as consequências da escolha dele no conto.
3. Ao final do conto, o médico consegue
enganar a Morte mais uma vez usando a oração do Pai-Nosso.
👉 O que essa atitude revela sobre o personagem e sua visão sobre a vida
e a morte? Desenvolva seu ponto de vista.
4. A história mistura elementos fantásticos
com situações da vida real, como a pobreza, o desejo de sobreviver e o medo da
morte.
👉 Na sua opinião, por que histórias assim continuam sendo lidas e
apreciadas mesmo com o passar do tempo? Argumente com base na função da
literatura na sociedade.
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